Podre de Chique: retrospectiva extraordinária de Adir Sodré
Podre de Chique: retrospectiva extraordinária de Adir Sodré
Curadoria: Guilherme Altmayer e Leno Veras
Paço Imperial – Rio de Janeiro
20 de julho a 23 de outubro de 2022.
Bemvindes ao extraordinário universo pictórico de Adir Sodré (Rondonópolis, MT, 1962 – Cuiabá, MT, 2020). Nesta mostra estão reunidas diversas obras até hoje inéditas do público, presentes em relevantes coleções brasileiras que, desde cedo, reconheceram a importância deste artista mato-grossense, que reúne aqui sua primeira, e muito merecida, retrospectiva: como se diz em Cuiabá, podre de chique.
Propositalmente organizada de forma não linear quanto a sua cronologia, esta exposição busca reconstituir a complexidade da trajetória deste agente crítico cuja radicalidade carece de visibilidade e maior reconhecimento, tamanha a continuada urgência dos temas que manifesta nas dezenas de obras museológicas, bibliográficas e arquivísticas aqui reunidas, nucleadas ao redor de cinco proposições conceituais: Cuyaverá (Cuiabá), Tapa na cara pálida (horrores da branquitude), Ditos e Malditos (imundos das artes), O Pop não poupa ninguém (cultura de massas) e Manifestos Paus, Brasil! (fabulações estético-eróticas).
Ao som de artistas como a berlinense Nina Hagen e a sul-mato-grossense Tetê Espíndola, Adir pintou, freneticamente, por mais de quarenta anos, toda sorte de superfícies que encontrava, inclusive telas, muitas das quais se reencontram neste conjunto universo. Sodré se contrapunha fortemente à ideia de regionalização, abordando desde o contexto local cuiabano a universalidade das questões que atravessam os campos social, político e econômico do Brasil (também sob ditadura militar) e do mundo, em sua complexidade ascendente desde o final dos anos 1970: como elucida Aline Figueiredo, uma de suas principais interlocutoras, se o mundo é redondo, qualquer ponto é um ponto – o “centro” não passa de insegurança colonial.
Guiados numa viagem por rios caudalosos povoados por criaturas fantásticas – celebridades espetaculares, transformistas icônicas, milicos e cânones – experimentamos múltiplas perspectivas, debochadas e irônicas, sobre temas tão complexos como os delírios imperialistas do branco invasor que objetifica e aniquila as populações originárias, enquanto dá as costas para a devastação da fauna e flora dos mais importantes biomas brasileiros, ou os jogos de poder no campo das artes (frente ao qual foi sempre insubmisso); além, é claro, dos ímpetos desejantes de liberdade de gêneros e sexualidades; com Picassos e Matisses, Tarsilas e Divines, como pano de fundo para extravagantes ficções. Para Adir, se Freud explica, Olga del Voga (analista argentina performada por Patrício Bisso) intriga.
Cuyaverá
Cuyaverá, uma das possíveis origens do nome Cuiabá, importante capital da região Centro-oeste do Brasil, é ponto de encontro dos mais importantes biomas brasileiros – Pantanal, Amazônia e Cerrado, e terra de indígenas Coxiponés, Bororos, e muitas outras etnias, tantas delas dizimadas, como os Paiaguás, por ser destino distópico de sanguinários bandeirantes. Também foi a terra que acolheu Adir Sodré – nascido na vizinha Rondonópolis – ainda em sua adolescência, e de onde o jovem artista nunca mais arredou os pés. Ali, aos 15 anos, iniciou sua incursão na pintura via Ateliê da Fundação Cultural de Mato Grosso – orientado por Humberto Espíndola e Dalva de Barros, personalidades essenciais para a gestação de muitos artistas mato-grossenses – retratando os cotidianos da cidade, com foco atento à precariedade do bairro pobre denominado Pedregal, local onde sua família se instalou e residiu por décadas. A paisagem cuiabana e suas populações (manicures, engraxates, primeiras damas…), sob a volúpia de um sol implacável, tornam-se cenário e atores para suas crônicas visuais – futxicaiadas nas quais descreve paisagens culturais da capital, e denuncia da corrupção à miséria, indissociáveis dramas brasileiros, com a audácia de poucos.
Tapa na cara pálida
Apesar do reconhecimento internacional que obteve, tendo participado de mostras em Goiânia (onde performou com a cantora germânica Nina Hagen, uma de suas musas inspiradoras), Nova Iorque, Paris, e Tóquio, Adir não tinha interesse em se deslocar do seu epicentro, região que também é reconhecida como coração geodésico da América do Sul. Sodré retrata de forma extravagante como os ecossistemas de transição entre o Cerrado e a Amazônia, porta de entrada do Pantanal – todos já e processo de devastação (assim como os povos originários que lá habitam) – são ameaçados, há mais de quinhentos anos, pelos múltiplos imperialismos que assolam estes mananciais de vida primordiais. Objetificadas por ávidos homens brancos, sob as formas grotescas de caçadores de peles, ou turistas consumidores, as populações autóctones foram representadas de forma contundente pelo artista, ainda na década de 80 – horrores dos zoológicos humanos modernos, e contemporâneos, cuja finalidade é o regozijo perverso do imaginário europeu, e norte-americano, além do deleite dos neo-colonizadores sul-sudestinos.
Ditos e malditos
Consciente dos podres poderes que permeiam tanto a arquitetura do sistema operativo das artes, quanto a engenharia das políticas ditatoriais militares, Adir retratava, de forma propositalmente ácida e absolutamente insubmissa, um elenco de personalidades com quem se relacionava via dinâmica de coalizão e colisão
Obras-corpo
Obras-corpo
Arquivo de registros das obras presentes na mostra Os Corpos são as Obras na Despina em 2017.
Obras-corpo provoca pensar um trabalho de arte como uma materialidade inseparável da corporeidade que a concebe; que ainda que ela possa ganhar distância e autonomia como obra, ela estará sempre em relação com a pessoa criadora.
A organização do espaço expositivo da mostra Os corpos são as obras na Despina se deu de tal forma que o espectador começasse a experiência por alguns arquivos históricos de resistências transviadas, notadamente iniciada com a flâmula da Turma OK, para, então, navegar entre trabalhos que pensam as ações da presente década. Comecemos nossa visita “gayada” pela mostra.
1. Turma OK
A primeira obra que se avistava, ao entrar nos limites expositivos da mostra, era a flâmula do clube social Turma OK, um estandarte gentilmente cedido pela direção do espaço para a exposição. A peça, confeccionada em veludo azul, continha adornos dourados que compunham o nome Turma OK. Na última noite da exposição ativamos essa obra estandarte para ela que nos conduzisse em procissão/caminhada pelas ruas da Lapa em direção à noite de celebração no clube Turma OK. Partimos em procissão/caminhada do Despina até o Turma OK, isto é, do Saara à Lapa, onde aconteceu a cuidadosa cerimônia de devolução da flâmula para o presidente do clube, Carlos Salazar Pereira Viegas.
Turma OK é o espaço LGBTQI mais antigo do Brasil: criado em 1961, ele está em atividade desde então, com exceção do período entre os anos de 1969 e 1975, já que o local permaneceu fechado por conta das ameaças de violências repressivas e moralistas do período da ditadura militar.
Segundo o pesquisador Rogério da Costa, em sua dissertação Sociabilidade homoerótica masculina no Rio de Janeiro na década de 1960: relatos do jornal O Snob (2010)¹, o nome “turma” era comumente usado nas décadas de 1950 e 1960 por desviados e entendidos, que promoviam encontros em apartamentos para fins de diversão e socialização, uma vez que esse tipo de reunião em locais públicos era socialmente rejeitado e reprimido pela polícia (Costa, 2010). Nas turmas – entre jantares, números de transformismo improvisados e encenações de teatro –, conformavam-se fortes laços de solidariedade. Para manter a discrição, necessária para não chamar a atenção dos vizinhos, os aplausos eram substituídos pelo estalar dos dedos (Costa, 2010). Além da Turma OK, existiram vários outros grupos na cidade do Rio de Janeiro. São exemplos: Turma do Catete, Turma da Glória, Turma de Copacabana, Turma da Zona Norte, Turma do Leme, Turma de Botafogo e o Grupo Snob (Costa, 2010).
Hoje instalado no sobrado de um pequeno prédio na Rua dos Inválidos, a casa promove reuniões e feijoadas entre os sócios. Ela também recebe convidados e apoiadores para eventos, espetáculos de variedades, nos quais shows de gogo boys e transformistas, novatas e veteranas, são a grande atração. Todo ano a casa elege o Rei e a Rainha Turma OK.
O encerramento da mostra foi comemorado na Turma OK, em uma noite especial em homenagem a travesti Luana Muniz.
2 - 22. Eduardo Kac
Eduardo Kac Manifesto de Arte Pornô, 1980 Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982. 23,7×16,2cm
Eduardo Kac Movimento de Arte Pornô Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982 DVD da performance 4’43’’, preto & branco, som, vídeo
Eduardo Kac Manifesto de Arte Pornô, 1980 Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982. 23,7×16,2cm
Eduardo Kac Movimento de Arte Pornô Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982 DVD da performance 4’43’’, preto & branco, som, vídeo
“Arte é penetração e gozo”, diz uma das linhas do Manifesto de Arte Pornô do coletivo Gang e Eduardo Kac, publicado em maio de 1980 e distribuído durante a performance Intervenção na praia de Ipanema, em 1982, momento em que desfilaram palavras, poemas e corpos nus. O registro em vídeo preto e branco da performance Intervenção foi também exibido na parede oposta ao manifesto.
Através da pornografia, o coletivo provocava o strip tease das artes e do conservadorismo dos museus. Usando diversos meios – zines, panfletos, histórias em quadrinhos –, o grupo levava o poema pornô às ruas, à praia, às festas – em plena ditadura militar. Em Memória em disputa: Artes obscenas em foco (2016)², a pesquisadora e curadora Fernanda Nogueira descreve o movimento:
“A partir da noção de ‘anti-tradição’, membros da Gang e do Movimento de Arte Pornô assumiram a poesia e a literatura como territórios a serem pervertidos por meio de um projeto burlesco
Movimento coletiva NÚvemNEM
Movimento coletiva NÚvemNEM
Na urgência política, na confluência desejante de ações e transições, algumes de nós que fomos da Casa Nuvem e outres apoiadores, tecemos uma aliança com a CasaNem para fortalecer as lutas por direitos para a comunidade LGBTI. Entendemos a necessidade e a responsabilidade que essa passagem pede, para que novas portas, janelas e casas possam se abrir. Queremos superar entraves do passado, e acima de tudo e garantir a re-existência e a sustentabilidade da CasaNem.
Queremos trans-formar, trans-passar as barreiras e RE-EXISTIR. As campanhas desenvolvidas pela coletiva tem por objetivo arrecadar dinheiro para pagar as dívidas e criar condições que a CasaNem possa se regularizar e re-existir, neste mesmo, ou em um novo espaço.
A CasaNem, enquanto associação sócio-cultural sem fins lucrativo que resiste de forma independente há mais de 4 anos, mantém-se da colaboração e trabalho voluntário de pessoas que acreditam neste importante projeto social, idealizado por Indianare Siqueira como um espaço totalmente independente de órgãos governamentais e gerido por transvestigeneres, que tem colaborado diretamente na transformação de muitas vidas.
O PreparaNem (curso preparatório para ingresso de LGBTIs nas universidades, que se multiplicou e inspirou outros espaços em todo o país) é um dos projetos lá desenvolvidos, tendo já logrado incluir um número considerável de transexuais e travestis em universidades e no mercado formal de trabalho. Para atingir essa meta, além do pré-vestibular, são oferecidos cursos de corte e costura, maquiagem e cabeleireira, idiomas, dentre eles libras, e capacitação audiovisual.
Ação Cachaça NÚvemNEM
Linha de produção da cachaça NÚvemNEM durante as reuniões da coletiva no Palco Lapa destinada a financiar as ações da NUvemNEM
Ação Festa NUvemNEM
Ação Leilão beneficente no Parque Lage
Flyer do leilão
em benefício a CasaNem em 2018
Neste sentido, o grupo Transrevolução, Movimento NÚvemNEM e Escola de Artes Visuais do Parque Lage juntes organizaram um leilão de arte, durante a realização da mostra Queermuseu no Parque Lage, com o objetivo de garantir sustentabilidade para a CasaNem – espaço pioneiro de acolhimento e passagem para pessoas transgêneras e LGBTIs, vítimas de expulsão familiar, exclusão social e preconceito no Brasil e países fronteiriços.
Na urgência política, na confluência desejante de ações e transições, algumes de nós que fomos da Casa Nuvem e outres apoiadores, tecemos uma aliança com a CasaNem para fortalecer as lutas por direitos para a comunidade LGBTI. Entendemos a necessidade e a responsabilidade que essa passagem pede, para que novas portas, janelas e casas possam se abrir. Queremos superar entraves do passado, e acima de tudo e garantir a re-existência e a sustentabilidade da CasaNem.
Queremos trans-formar, trans-passar as barreiras e RE-EXISTIR. As campanhas desenvolvidas pela coletiva tem por objetivo arrecadar dinheiro para pagar as dívidas e criar condições que a CasaNem possa se regularizar e re-existir, neste mesmo, ou em um novo espaço.
A CasaNem, enquanto associação sócio-cultural sem fins lucrativo que resiste de forma independente há mais de 4 anos, mantém-se da colaboração e trabalho voluntário de pessoas que acreditam neste importante projeto social, idealizado por Indianare Siqueira como um espaço totalmente independente de órgãos governamentais e gerido por transvestigeneres, que tem colaborado diretamente na transformação de muitas vidas.
O PreparaNem (curso preparatório para ingresso de LGBTIs nas universidades, que se multiplicou e inspirou outros espaços em todo o país) é um dos projetos lá desenvolvidos, tendo já logrado incluir um número considerável de transexuais e travestis em universidades e no mercado formal de trabalho. Para atingir essa meta, além do pré-vestibular, são oferecidos cursos de corte e costura, maquiagem e cabeleireira, idiomas, dentre eles libras, e capacitação audiovisual.
Ação Cachaça NÚvemNEM
Ação Festa NUvemNEM
Ação Leilão beneficente no Parque Lage
Neste sentido, o grupo Transrevolução, Movimento NÚvemNEM e Escola de Artes Visuais do Parque Lage juntes organizaram um leilão de arte, durante a realização da mostra Queermuseu no Parque Lage, com o objetivo de garantir sustentabilidade para a CasaNem – espaço pioneiro de acolhimento e passagem para pessoas transgêneras e LGBTIs, vítimas de expulsão familiar, exclusão social e preconceito no Brasil e países fronteiriços.
Obras doadas para o leilão beneficente
Manicure Show NAVALHA
Manicure Show NAVALHA
Concepção e curadoria: Ana Matheus Abbade
Esta edição Manicure Show NAVALHA revelará por nós e para nós: gays: bichas: *trans: não-binárias: afeminad_s: masculin_s: lésbicas: corpos não conformados: gênero disruptivo: mulheres desgovernáveis: repito: nesta edição Manicure Show, NAVALHA trará a base de seu EXÉRCITO de NAVALHAS: aquilo em que trazemos em nossas BASE. TRÁ!
Imagem capa: Cybershot___
Bandeira NAVALHA Manicure Show por Ana Matheus Abbade
19 horas. Ao som de Frozen2000, composta por Vera Lúcia e Junior Ferreira com repertório eclético entre funk carioca e pop americano de Daniela Avellar, com sentimentos eletrônicos da música house o público era estimulado a soltar o corpo e tomar consciência da potente reunião que ali se configurava.
Uhura Bqueer
Uhura Bqueer. Registro: Felipe Molitor
Após passar suas mãos pelas da manicure, com uma peixeira empunhada e na pele (sintética) de uma onça, Uhura Bqueer abre os trabalhos performáticos da noite. Drag queen/transformista paraense, Uhura promove duas performances de lip sync para as canções Piranha (1974) de Alypyo Martins e Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar (Todo dia era dia de Índio) (1981), de Jorge Ben Jor. Ambas as canções evocam, em Uhura, a construção da nacionalidade em torno do corpo amazonense e de suas posições histórica e geográfica. Seu corpo é também assentamento político, conexão tecnoamazônica de passado e presente de luta e visões de futuro.
A peixeira é um objeto que nos leva de volta a 1989, quando, durante audiência pública em Altamira (PA), foi discutido o projeto de construção do complexo hidrelétrico de Kararaô no rio Xingu, atual Belo Monte. Em um gesto de resistência que percorreu o mundo, a jovem índia Tuíra encostou a peixeira no rosto do então presidente da Eletronorte com um movimento rápido e preciso, para reivindicar suas terras indígenas e o seu espírito de vida. A repercussão desse ato de protesto levou o Banco Mundial a suspender o financiamento da usina.
Vinicius Pinto Rosa
Vinicius Pinto Rocha. Registro: VIDAFODONA
A noite segue e Ana recebe Vinicius Pinto Rosa para uma sessão de pedicure que preparou a bicha para o ataque. O artista entra em cena carregando, em cópula, entre os braços e pernas uma estrutura que remete a uma base escultórica – peça por ele construída. Assim inicia a performance Baseline. No centro da sala, Vinicius traça linhas com fita adesiva que tangenciam e demarcam o território que o artista ocupa.
O envolvimento do seu corpo com a base é intenso, duradouro e movido ao contato – um processo de reconhecimento que leva o artista a subir e se sustentar com segurança e leveza na base, que acomoda seus pés como dois saltos altos. Baseline sintetiza a imaginação de um corpo inconformado que nasce em relação e separação com o mundo. A base, construto moderno que separa a arte do mundo, é substituída por algo complexo, que, tal como a vida, escapa do peso e encontra vetores para novas subjetividades na abstração.
Michelly
Enquanto isso, Michelly, assídua frequentadora do espaço Despina e que se encontra em situação de rua no centro da cidade, senta-se na mesa da manicure para reforçar suas próprias unhas com o material disponível, dando pistas de suas intenções naquela noite.
A movimentação de pessoas, em um trânsito constante, faz com o espaço seja tomado por conversas, risadas e gritos – encontros de corpas migas e bailantes. A falta de um bar próprio do Show faz com que as pessoas ocupem também a rua, onde vários ambulantes do centro se fizeram presentes para atender a clientela sedenta.
Eis que, vestida de Zé Pelintra – terno e chapéus brancos com detalhes e gravata vermelha –, Michelly sobe majestosa as escadas da entrada da Despina carregando nos ombros uma estátua de São Jorge e seu cavalo esculpidos em madeira, material que encontrou na rua. No candomblé, aliás, São Jorge é representado por Ogum. No centro da sala, bem embaixo da bandeira Navalha!, Michelly repousa a escultura e, discretamente, ensaia alguns movimentos de capoeira sobre a escultura, como um ritual de anúncio de chegada.
Michelly, então, senta-se com as pernas abertas, abraça a peça com carinho, e esconde notas de dinheiros embaixo dela. Enquanto sorri, ela orna a estátua com o colar de contas que trazia envolvido no pescoço: passos de sabedoria e força de uma guerreira que enfrenta o dragão. Ao final, Michelly anexa um pequeno bilhete à escultura, no qual realiza a seguinte inscrição: 50.000 moedas – o preço estimado para a sua obra. Dou uma nota de 50 reais, e ela faz o gesto para me entregar a escultura. Sugiro que a peça se torne uma das obras em exibição na mostra e que ela passe outro dia para buscá-la. Michelly aceita minha proposta e sai da sala para
do meu cuido eu
do meu cuido eu
do meu *CUido eu
Ano: 2015 Arquivo digital: tropicuir.org
Cidade: Rio de Janeiro
Estratégia criativa: ‘cuidado’ e ‘cu’ na mesma palavra, escritos a mão em camiseta para vestir no corpo em manifestações e em momentos de contestação variados
Direito de uso: ilimitado não comercial
Livre para baixar: arquivo do meu *CUido eu em formato png transparente para uso e modificação irrestrito disponível no botão abaixo:
Esta trabalho está licenciado sob Creative Commons Atribuição não comercial 4.0 licença internacional.
Título: do meu *CUido eu
Ano: 2015
Arquivo digital: tropicuir.org
Cidade: Rio de Janeiro
Estratégia criativa: ‘cuidado’ e ‘cu’ na mesma palavra, escritos a mão em camiseta para vestir no corpo em manifestações e em momentos de contestação variados
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Pornôpirata
Pornôpirata
Pós-porno e afronta à heteronormatividade compulsória
Por: Bruna Kury
Qual era sua intenção ao imaginar este trabalho?
Ao imaginar o trabalho me veio a vontade de expandir os imaginários em relação a sexualidade e o que permeia essa construção normatizadora. Pensando em sexualidade criativa e não hegemônica, corporalidades dissidentes com lugar de fala e desconstrução da norma. A popularização da póspornografia por um viés sudaka.
A venda de DVDs é acompanhada de diálogo num processo de interseccionalizar questões como raça, gênero, sexualidade, etc. Nesse mundo onde as relações são hierarquizadas e os desejos podados e condicionados a corpos hétero branco e cis, o projeto PORNOPIRATA (2017) foi criado para ser fonte de renda e autonomia na marginalidade; popularização da PÓS-PORNO e afronta a heteronormatividade compulsória, a idéia é participar de eventos e feiras principalmente na rua para mostrar que outro pornô é possível e muitas vezes nossos tesões estão condicionados.
Sexorcismos, pornoterrorismo, pós pornografia, glitterrorismo, sexualidades dissidentes, corpas não assimiláveis e marginalizadxs e oprimidxs, corpxs gordxs, travestis, ditas doentes, doentes, cyborgs, kuirs, sudakas, negrxs, indigenxs, trans, intersexs, com diversidades funcionais, ditas sujas, sujas, antiheterokapital.
Como se deu a materialização do trabalho?
O projeto é criação minha mas não aconteceria se não fosse as parcerias e afetos nesse processo. Considero uma produção coletiva mesmo a curadoria dos vídeos sendo minha. As primeiras capas (dvd 1 e 2 contou com duas capas cada, feitas pelo artista Márcio Vasconcelos.
A terceira foi eu mesma que fiz e a quarta edição com curadoria em parceria com monstruosas e distro dysca teve capa feita pelas mesmas. Os DVDs são vendidos tanto por mim quanto por outras pessoas dissidentes dentro dessa rede póspornô, tendo como comum acordo o cuidado com a difusão do material. Na ocasião da banca na exposição “os corpos são as obras”, contei com a luxuosa parceria de Ventura Profana, performando comigo “escorpionika”
Após a leitura de um texto escrito por mim estávamos em ação póspornô que digo ser sobre cuidado. Na ação, me masturbo com o cabo de uma faca deixando a lâmina para fora, numa espécie de rabo-prótese-cortante. A performance é sobre o cú que não é passivo e sim ativo e cortante, uma resposta violenta ao heteropatriarcado. Após a masturbação eu e Ventura ficamos num tipo de dança dos corpos onde conversamos analmente.
Fálico, face, plug anal. série eskorpiônica
Como você vê seu trabalho hoje?
Vejo meu trabalho como arte contemporânea interseccional, a póspornografia é só um dos caminhos, todo o percurso e as historicidades fazem parte e reverberam, a pornopirataria se conecta a trabalhos em performance “escorpiônika” (que já performei sozinha várias vezes e também com Ventura Profana na Despina, no Mastur Bar com Mogli Saura, no festival Anormal com a Diana Pornoterrorista, etc), o objetual de resina dildo-faca, a série fotográfica, etc. Vejo o trabalho em processo e não faria nada diferente.
Que palavras conectam, colocam seu trabalho em relação com práticas, corpos, textos?
necropolítica, fronteiras, rede, anarquia, dissidência, pornoterror, insurreição, revolta, transexualidade, capitalismo gore, hiv
BIO / Bruna Kury (1987) é brasileira, anarcatransfeminista, performer, artista visual e sonora, atualmente reside em São Paulo (BR) e desenvolve trabalhos em diversos contextos, seja no mercado institucional da arte ou em produções de borda. Focada em criações atravessadas por questões de gênero, classe e raça (contra o cis-tema patriarcal heteronormativo compulsório vigente e a opressões estruturais-GUERRA de classes). Já performou com a Coletiva Vômito, Coletivo Coiote, La Plataformance, MEXA e Coletivo T. Atualmente investiga sonoridades no pósporno e a criação de objetuais que são ramificações do trabalho com performance.
Ação de Bruna Kury e Ventura Profana na noite de abertura da mostra Os Corpos são as Obras na Despina, Rio de Janeiro em 2017.
Pós-porno e afronta à heteronormatividade compulsória
Bruna Kury
Qual era sua intenção ao imaginar este trabalho?
Ao imaginar o trabalho me veio a vontade de expandir os imaginários em relação a sexualidade e o que permeia essa construção normatizadora. Pensando em sexualidade criativa e não hegemônica, corporalidades dissidentes com lugar de fala e desconstrução da norma. A popularização da póspornografia por um viés sudaka.
A venda de DVDs é acompanhada de diálogo num processo de interseccionalizar questões como raça, gênero, sexualidade, etc. Nesse mundo onde as relações são hierarquizadas e os desejos podados e condicionados a corpos hétero branco e cis, o projeto PORNOPIRATA (2017) foi criado para ser fonte de renda e autonomia na marginalidade; popularização da PÓS-PORNO e afronta a heteronormatividade compulsória, a idéia é participar de eventos e feiras principalmente na rua para mostrar que outro pornô é possível e muitas vezes nossos tesões estão condicionados.
Sexorcismos, pornoterrorismo, pós pornografia, glitterrorismo, sexualidades dissidentes, corpas não assimiláveis e marginalizadxs e oprimidxs, corpxs gordxs, travestis, ditas doentes, doentes, cyborgs, kuirs, sudakas, negrxs, indigenxs, trans, intersexs,
Curto-circuito de zines feministas 2015-2017
Curto-circuito de zines feministas 2015-2017
Por: Camila Puni
A instalação exibiu zines xerografados produzidos no período 2015-2017. Esses objetos de arte feminista fazem parte da pesquisa de doutoramento intitulada Itinerâncias zine-feministas: um mergulhar em datilografias de fúria & saudade, defendida em 2019. A exibição contou a história dos zines feministas brasileiros (com os próprios zines) encontrados em cidades como: Rio de Janeiro (grande Rio e Baixada), São Paulo-SP, Florianópolis-SC, Belo Horizonte-MG, Porto Alegre-RS, Curitiba-PR. Acompanhei a produção zinística por (e entre) redes de afeto e amizade-feminista. Mas por que são zines feministas? Porque são vozes, letras, rabiscos, colagens, HQ’s e poesias datilografadas com resistência, raiva, dor e sangue.
Curadoria de zines produzidos entre 2015-2017
Qual era sua intenção ao imaginar este trabalho?
Acredito que mais do que a possibilidade em imaginar tive foi uma oportunidade em organizar o material artístico que vinha recolhendo até o momento. O que para uma pesquisadora em pleno calor do campo, vale muitíssimo. A principal motivação em participar da exposição era de exibir, abrir o processo e tirar das pastas as autopublicações que estavam frescas, recém lançadas por diversas coletivas:
TESOURA, Maracujá Roxa, Drunken Butterfly, Feira Velcrx, TIAMAT, Efusiva Distro; eram identidades: sapatão, fancha, lesbiana, sapa-bi, sapa-mpb, lésbica vegana, sapatânike, preta-gorda, poliamorosa (ah! Como vocês são maravilhosaxs).
Assim, poder perceber como os zines agiam em contato com pessoas que nunca haviam visto um zine. Um super desafio já que os zines raramente circulam em galerias ou instalações artísticas. São encontrados nas ruas, em shows punks ou feiras autônomas. Deparei-me com a sensação de estar levando ao espaço Despina um objeto banido por sua fragilidade. Afinal, são algumas folhas de papel dobradas ao meio… em alguns casos, nem ao menos um grampo a segurá-los. São as delicadezas que rodeiam os zines a sua fonte de resistência.
Como se deu a materialização do trabalho?
Quando espalhei pelo chão de meu quarto (um apto gracinha no bairro Santa Teresa) os mais de 50 zines que havia coletado na época, percebi que eles de alguma forma se conectavam. O Gui Altmayer foi fundamental nesse caminho de percepção, pois conseguimos visualizar juntxs a ligação afetiva desse objeto à maquina de escrever. Havia um circuito de ligação nas temáticas, formatos e autorias. Com isso a instalação se materializou. Tive a ideia de amarrar as fitas roxas (cor utilizada em bandeiras feministas) ligando cada zine a uma tecla da máquina de escrever. Os zines representavam a rede de autocuidado de meu campo de pesquisa.
Como você vê seu trabalho hoje?
Foi uma experiência tão importante que eu seria capaz de tornar essa instalação itinerante, para poder exibi-la novamente. Revisitar o trabalho e poder amarrar outros zines, a partir de outros recortes, nas teclas de uma máquina de escrever e libertá-los de minhas pastas mofadas. Seria certamente um alívio. Observo que o trabalho curto-circuito de zines feministas cresceu por seu montante de palavras registradas na tese. E agora preciso de alguma maneira compartilhar esses saberes, seja em sala de aula ou em congressos internacionais. O medo de publicar nossas artes ou de criar nossas poéticas, nos deixa a cada década.
Que palavras conectam, colocam seu trabalho em relação com práticas, corpos, textos?
Ao praticar zines, o que se pratica? Que corpos circulam com zines nas mãos? Que tipo de textos é encontrado atualmente nessa arte fugaz? Não consigo separar os Corpos São As Obras de minha tese, por isso acho que algumas palavras chaves podem
Ocupação Sertransneja
Ocupação Sertransneja
Por: coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem
Junho de 2017. A noite de abertura de Os Corpos são as Obras foi ocupada pelo coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem para uma noite Sertransneja com quadrilha travesti e leitura de cordéis.
SerTransneja Balaiera
Travesti que é balaieira
Roda no maracatu
e resiste com o corpo do balaio
Na flor do caju
Travesti é ser vivente
da sobrevida do sertão
enfrentar ódio indolente
é mais que aperreio, bala e facão
Foram chamar as trava da peste
Que é que há se eu vim do norstes
eu vim de lá
eu vim de lá
Roda balaieira
Vai rodando sem parar
Vai rodando no balaio
Na flor do maracujá
Axé maracatu elétrico
Axé meu povo nagô
Axé as trans de Aracatiaçu
Dança dança meu amor
(Tertuliana Lustosa e Wescla Vasconcellos)
Eu escolhi ser de verdade, e isso me faz grande nobre e real.
E embora, as vezes, dói menos que ficar,
Não sou do tipo orgulhosa, mas devo admitir, que desta vez eu tenho razão,
Não consigo levantar, caminhar, em direção ao desconhecido.
Conhecida sim, é a felicidade.
Vocês me deixam atordoados, e anestesiada,
Afinal de contas, na minha frente, estão apenas corpos caídos
Identificados como meu futuro
E eu escolhi ser de verdade,
E isso me faz grande nobre e real.
Sou Francisco, sou João, sou José, sou grito, sou a força, sou amor, sou a fé, sou o espírito revolucionário, sou Laruê do Exú, sou a negra, africana, sou o frevo, sou o sol potiguar, sou atriz, sou escrava, sou rainha, sou Maria, sou Joana, sou a Xica, que vive na ladeira da misericórdia, sou apenas cabelereira e PUTA.
Governo, você vai ter que admitir,
a minha sobrevivência.
Quadrilha Setransneja promovida pelo coletivo Xica Manicongo
Junho de 2017. A noite de abertura de Os Corpos são as Obras foi ocupada pelo coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem para uma noite Sertransneja com quadrilha travesti e leitura de cordéis.
SerTransneja Balaiera
Travesti que é balaieira
Roda no maracatu
e resiste com o corpo do balaio
Na flor do caju
Travesti é ser vivente
da sobrevida do sertão
enfrentar ódio indolente
é mais que aperreio, bala e facão
Foram chamar as trava da peste
Que é que há se eu vim do norstes
eu vim de lá
eu vim de lá
Roda balaieira
Vai rodando sem parar
Vai rodando no balaio
Na flor do maracujá
Axé maracatu elétrico
Axé meu povo nagô
Axé as trans de Aracatiaçu
Dança dança meu amor
(Tertuliana Lustosa e Wescla Vasconcellos)
Eu escolhi ser de verdade, e isso me faz grande nobre e real.
E embora, as vezes, dói menos que ficar,
Não sou do tipo orgulhosa, mas devo admitir, que desta vez eu tenho razão,
Não consigo levantar, caminhar, em direção ao desconhecido.
Conhecida sim, é a felicidade.
Vocês me deixam atordoados, e anestesiada,
Afinal de contas, na minha frente, estão apenas corpos caídos
Identificados como meu futuro
E eu escolhi ser de verdade,
E isso me faz grande nobre e real.
Sou Francisco, sou João, sou José, sou grito, sou a força, sou amor, sou a fé, sou o espírito revolucionário, sou Laruê do Exú, sou a negra, africana, sou o frevo, sou o sol potiguar, sou atriz, sou escrava, sou rainha, sou Maria, sou Joana, sou a Xica, que vive na ladeira da misericórdia, sou apenas cabelereira e PUTA.
Governo, você vai ter que admitir,
a minha sobrevivência.