Arquivo de registros das obras presentes na mostra Os Corpos são as Obras na Despina em 2017.
Obras-corpo provoca pensar um trabalho de arte como uma materialidade inseparável da corporeidade que a concebe; que ainda que ela possa ganhar distância e autonomia como obra, ela estará sempre em relação com a pessoa criadora.
A organização do espaço expositivo da mostra Os corpos são as obras na Despina se deu de tal forma que o espectador começasse a experiência por alguns arquivos históricos de resistências transviadas, notadamente iniciada com a flâmula da Turma OK, para, então, navegar entre trabalhos que pensam as ações da presente década. Comecemos nossa visita “gayada” pela mostra.
A primeira obra que se avistava, ao entrar nos limites expositivos da mostra, era a flâmula do clube social Turma OK, um estandarte gentilmente cedido pela direção do espaço para a exposição. A peça, confeccionada em veludo azul, continha adornos dourados que compunham o nome Turma OK. Na última noite da exposição ativamos essa obra estandarte para ela que nos conduzisse em procissão/caminhada pelas ruas da Lapa em direção à noite de celebração no clube Turma OK. Partimos em procissão/caminhada do Despina até o Turma OK, isto é, do Saara à Lapa, onde aconteceu a cuidadosa cerimônia de devolução da flâmula para o presidente do clube, Carlos Salazar Pereira Viegas.
Turma OK é o espaço LGBTQI mais antigo do Brasil: criado em 1961, ele está em atividade desde então, com exceção do período entre os anos de 1969 e 1975, já que o local permaneceu fechado por conta das ameaças de violências repressivas e moralistas do período da ditadura militar.
Segundo o pesquisador Rogério da Costa, em sua dissertação Sociabilidade homoerótica masculina no Rio de Janeiro na década de 1960: relatos do jornal O Snob (2010)¹, o nome “turma” era comumente usado nas décadas de 1950 e 1960 por desviados e entendidos, que promoviam encontros em apartamentos para fins de diversão e socialização, uma vez que esse tipo de reunião em locais públicos era socialmente rejeitado e reprimido pela polícia (Costa, 2010). Nas turmas – entre jantares, números de transformismo improvisados e encenações de teatro –, conformavam-se fortes laços de solidariedade. Para manter a discrição, necessária para não chamar a atenção dos vizinhos, os aplausos eram substituídos pelo estalar dos dedos (Costa, 2010). Além da Turma OK, existiram vários outros grupos na cidade do Rio de Janeiro. São exemplos: Turma do Catete, Turma da Glória, Turma de Copacabana, Turma da Zona Norte, Turma do Leme, Turma de Botafogo e o Grupo Snob (Costa, 2010).
Hoje instalado no sobrado de um pequeno prédio na Rua dos Inválidos, a casa promove reuniões e feijoadas entre os sócios. Ela também recebe convidados e apoiadores para eventos, espetáculos de variedades, nos quais shows de gogo boys e transformistas, novatas e veteranas, são a grande atração. Todo ano a casa elege o Rei e a Rainha Turma OK.
O encerramento da mostra foi comemorado na Turma OK, em uma noite especial em homenagem a travesti Luana Muniz.
Eduardo Kac Manifesto de Arte Pornô, 1980 Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982. 23,7×16,2cm
Eduardo Kac Movimento de Arte Pornô Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982 DVD da performance 4’43’’, preto & branco, som, vídeo
Eduardo Kac Manifesto de Arte Pornô, 1980 Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982. 23,7×16,2cm
Eduardo Kac Movimento de Arte Pornô Performance “intervenção”, Praia de Ipanema, 1982 DVD da performance 4’43’’, preto & branco, som, vídeo
“Arte é penetração e gozo”, diz uma das linhas do Manifesto de Arte Pornô do coletivo Gang e Eduardo Kac, publicado em maio de 1980 e distribuído durante a performance Intervenção na praia de Ipanema, em 1982, momento em que desfilaram palavras, poemas e corpos nus. O registro em vídeo preto e branco da performance Intervenção foi também exibido na parede oposta ao manifesto.
Através da pornografia, o coletivo provocava o strip tease das artes e do conservadorismo dos museus. Usando diversos meios – zines, panfletos, histórias em quadrinhos –, o grupo levava o poema pornô às ruas, à praia, às festas – em plena ditadura militar. Em Memória em disputa: Artes obscenas em foco (2016)², a pesquisadora e curadora Fernanda Nogueira descreve o movimento:
“A partir da noção de ‘anti-tradição’, membros da Gang e do Movimento de Arte Pornô assumiram a poesia e a literatura como territórios a serem pervertidos por meio de um projeto burlesco e rebelde. Com o slogan “revolução e prazer”, tanto as ações quanto os poemas procuravam criar um léxico, uma “gramática libidinal” para “liberar a sensualidade, subverter a linguagem e incorporar as minorias” (Nogueira, 2016, p. 121).²
Segundo Nogueira (2016), o Movimento de Arte Pornô ocupava o território artístico para criar acontecimentos transitórios, que intencionavam modificar, pela performance, o panorama social. Entre poemas e intervenções sonoras e corporais, o movimento intentava dizer que não existe “palavra que não mereça ser usada, da mesma forma que não existe zona do corpo que deva ser censurada” (Nogueira, 2016, p. 122)².
Edições originais, 1979-1981
Acervo Grupo Arco-Íris
Virando a esquina do Movimento de Arte Pornô, trinta e seis edições do jornal Lampião da Esquina eram expostas organizadas cronologicamente. As edições originais, gentilmente cedidas pelo Grupo Arco-Íris do Rio de Janeiro, se encontravam em estado bastante deteriorado, e por isso foram cuidadosamente envolvidas por envelopes plásticos. Reproduzimos também fac-símiles de quatro diferentes números do jornal, para que os visitantes pudessem manusear e interagir com os conteúdos dessas edições do jornal.
O Lampião da Esquina foi um jornal mensal que circulou nas bancas de todo o Brasil entre os anos de 1978 e 1981 – período do dito ‘abrandamento’ da ditadura militar. Com tiragem aproximada de 15.000 exemplares, em suas 38 edições, a publicação era parte da chamada imprensa alternativa, que se autodenominava ‘homossexual’, e tratou, com profundidade jornalística, de questões políticas urgentes relativas à repressão e à liberdades não somente das populações ‘gueis’ (formação predominante do seu conselho editorial), mas também de travestis, lésbicas, negrxs, mulheres e ameríndias.
O Lampião é documento vivo do início da articulação e da formação de muitos grupos e movimentos ativistas ‘desviados, entendidos’ e feministas, em São Paulo, Rio de Janeiro e outras regiões do país. Em suas páginas estavam presentes também questões que vão da masculinização das bichas a mapas de pegação sexual no centro de São Paulo, da perseguição a frequentadores de cinemas pornô à matança sistemática das travestis, da literatura lésbica de Cassandra Rios e da música de Leci Brandão às artes de Ney Matogrosso e Darcy Penteado.
No editorial de sua primeira edição, de abril de 1978, o jornal anunciava sua posição política sobre a questão homossexual, defendendo que:
“É preciso dizer não ao gueto, e, em consequência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem-padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência sexual como uma espécie de maldição […] o que LAMPIÃO reivindica em nome dessa minoria é não apenas se assumir e ser aceito – o que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades construídas em bases machistas lhes negou: o fato de que os ‘homossexuais’ são seres humanos. […] Pretendemos, também, ir mais longe, dando voz a todos os grupos injustamente discriminados – dos negros, índios, mulheres, às minorias étnicas do Curdistão: abaixo os guetos e o sistema (disfarçado) de párias” (Lampião, 1978).
CARLOS MOTTA
Shape or Freedom, 2013
Tinta acrílica sobre parede branca
Forma da Liberdade consiste em um enorme triângulo rosa invertido, pintado em parede ou fachada, que funciona como palco de fundo para cartazes impressos em papel jornal e disponibilizados gratuitamente. Carlos Motta utiliza o triângulo rosa como símbolo de liberdade para apresentar uma cronologia de eventos, tragédias e conquistas sexo dissidentes, colocados em relação à história do triângulo rosa do holocausto – trazendo à tona o pouco abordado genocídio de homossexuais e transvestigêneres pelos nazistas.
O triângulo, em diferentes cores e formatos, foi o símbolo utilizado pelos nazistas para identificar as razões pelas quais as pessoas foram feitas prisioneiras dos campos de concentração. O símbolo era costurado nos uniformes dos detentos. Triângulos cor de rosa eram usados para sinalizar homossexuais masculinos, mulheres trans, pedófilos, zoofílicos e estupradores. Já triângulos pretos eram usados para identificar mulheres feministas, lésbicas, alcoólicos, prostitutas e anarquistas.
Em colaboração com o artista investigamos fatos, violências e atos de resistência transviadas ao longo da história do Brasil, para serem, então, entremeadas com eventos do norte ocidental e as histórias do triângulo rosa e o uso do triângulo rosa invertido, que se tornou famoso por ter sido ressignificado pelo coletivo ACT UP³, em Nova Iorque no final dos anos 1980, para marcar a luta contra a crise pandêmica da AIDS: silêncio = morte.
A cronologia de Forma da Liberdade está disponível na íntegra e em formato expandido, sendo constantemente atualizada, aqui, nesta publicação.
Os resultados da investigação deram a ver os desenvolvimentos das resistências nas ruas e a conformação de guetos protegidos, redes subterrâneas, em periódicos e publicações marginais, organizações coletivas de militância e movimentos identitários LGBTI+. Procuramos destacar também, em grande medida, como a resistência tinha lugar nas artes do teatro, dos carnavais, dos bailes, das práticas transformistas – dos closes travestis às confusões de gênero do grupo teatral Dzi Croquetes e Vivencial Diversiones.
Era preciso buscar um ponto de partida que marcasse que nem o Brasil, tampouco as práticas denominadas pelos europeus de sodomitas, tiveram início com a invasão e a colonização portuguesa. Mas a condenação e a criminalização da sodomia, sim, tiveram início com a tomada das terras e dos povos originários: homofobia colonial. Na tese Decolonizando sexualidades: Enquadramentos coloniais e homossexualidade indígena no Brasil e nos Estados Unidos⁴, o cientista social Estevão Fernandes investiga os processos de subalternização das sexualidades dos povos originários, e como aparatos religiosos-estatais criaram mecanismos para normalizar seus comportamentos considerados desviados. Aparatos coloniais de repressão que viriam a complementar, como logo vamos ver na genealogia de Foucault, o dispositivo da sexualidade (Foucault, 1998).
Assim, no primeiro registro de Formas da Liberdade sobre o Brasil se lê:
“1500 – A prática da sodomia e sua condenação (1530) é trazida por colonizadores europeus para o Brasil. A prática encontra aqui terreno fértil pois era grande a liberdade nas práticas sexuais dos povos nativos” ⁵
Uma premissa relevante para entendermos como a prática da sodomia não foi trazida nas caravelas portugueses, foi a sua condenação moral que veio da Europa. Da mesma forma, séculos mais tarde, aportaria por aqui a ideia do sujeito homossexual e seu caráter patológico.
Nesse sentido, como aponta a artista Hija de Perra (2014)⁶, marcadores sociais de subalternidade foram se instaurando por estas terras, amparados pelo olhar do colonizador
“os homens indígenas como seres selvagens afeminados por conta da sua ornamentação e às mulheres como fogosas por terem parte dos corpos desnudos” ⁶
Os resultados dessa investigação tiveram origem nos mais diversos meios: blogs da internet, notícias de jornais, conversas na mesa do bar com Indianara e outras trans finíssimas, edições do jornal O Lampião da Esquina, incursões no clube social Turma OK. Além, é claro, de obras essenciais que narram historias transviadas no Brasil. Cito algumas: Devassos no Paraíso (1986), de João Silvério Trevisan, obra magistral que narra historias com foco nas artes do corpo; Ditadura e homossexualidades: Repressão, Resistência e a Busca da Verdade (2014), livro fruto da Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura militar, editado por Renan Quinalha e James Green; e Para além do carnaval – A homossexualidade masculina no Brasil do século XX (2000), de James Green.
Informações, fatos e relatos que longe de dar conta de todos os acontecimentos transviados da história brasileira, aponta para a necessidade de realização de um trabalho continuado e sistematizado de salvaguarda dessas violências, e dos sucessivos atos de resistência, e ainda mais salvaguarda das potências emanadas de todos os corpos desviados.
KLEPER REIS
CU É LINDO, CAP. 2: A Pedagogia do Cu,
VERS. 2: Os Três Movimentos
(criação-conservação-destruição)
Impressão em papel fotográfico
CU É LINDO, CAP. 3: A Cura Gay,
VERS. 1: Omolu ou O Curador Ferido ou
presente-passado-futuro
Instalação
Já o artista Kleper Reis apresentou dois trabalhos inter-relacionados de seu extenso projeto CU É LINDO. Nas imagens do CAP. 2: A Pedagogia do Cu, VERS. 2: Os Três Movimentos (criação-conservação-destruição), o artista mostra um processo de geração de vida a partir de compostagem gerada pelas próprias fezes.
Ao lado, na instalação CAP. 3: A Cura Gay, VERS. 1: Omolu ou O Curador Ferido ou presente-passado-futuro, um conjunto de ervas e plantas, cultivado a partir da compostagem gerada pelo próprio artista, era entremeada por sequências de pérolas que desenhavam no solo CU É LINDO, estrofe de um dos poemas de Adélia Prado.
Ao evocar a potência do cu, Kleper evidencia a ideia do desprezo imbuído na privação de “tudo que gera vida. Tudo que une. Tudo que é representação de vitalidade, de potência”(Reis apud Altmayer, 2016, p.84)⁷. O artista propõe pensar o corpo a partir do que se coloca na boca e de que maneira o tratamento de seus resíduos pode ser um primeiro movimento do ser criativo. “O primeiro movimento do ser criativo é se apropriar dos recursos geradores de sua vida. O primeiro movimento do ser criativo é plantar aquilo que se come. É a autonomia alimentar” diz o artista(Reis apud Altmayer, 2016, p.86)⁷.
ANA MATHEUS ABBADE
INDUMENTO manicure N.I, 2016
Sublimação em tecido poliester, 90 x 70cm
Em Indumento Manicure N.I., sublimação confeccionada em poliéster, Ana Matheus Abade veste o próprio corpo com um traje que leva gravado UNHA NAVALHA, e que dialoga com o outro trabalho apresentado, que ativou NAVALHA: Manicure Show. Ana veste um uniforme manicure que abre um diálogo entre práticas artísticas e o ofício de manicure, cuidando e lapidando unhas como navalhas, objetos cortantes de defesa pessoal, satisfação sensorial e desnormatização do corpo.
VICTOR ARRUDA
Unhas e Mamilos, 2014
Óleo sobre tela, 160 x 130 cm
Victor Arruda – um dos primeiros artistas brasileiros a abordar politicamente temas como gênero e homossexualidade, além do machismo e racismo em suas pinturas na década de 1970 – mostra um de seus trabalhos da série Unhas e Mamilos. Na obra, Victor retrata a conexão entre corpos, corpos com peitos de pau, mamilos que conectam e desconectam e fazem emergir grandes mãos que acariciam, mamilos, picas, e olhos que nos miram fixamente.
LYZ PARAYZO
Colar Concertina Popcreto, 2017
Objeto
Com a gilete debaixo da língua, a artista Lyz Parayzo exibe o colar Concertina Popcreto, parte de sua série Joias Bélicas. Um ornamento futurista para um pescoço desejoso de fetiche e proteção, que camufla, mas quer dar a ver que porta uma arma, um instrumento de defesa, ou a possibilidade de um ataque eminente. As palavras de Tertuliana Lustosa em O olhar cortante nos objetos de Lyz Parayzo (2018)⁸ complementam o olhar sobre a obra de Lyz:
“[…] A imagem aberta por Lyz Parayzo dialoga com o interdito e o desejo, discutindo sobre questões que estão entre o íntimo fetiche e o público visível, entre o sexo e a autodefesa. […] O corpo violado é um fetiche que objetifica a mulher e o feminino e que vem sendo discutido na obra de Lyz, desde que assume sua persona artística da Putinha Terrorista – aquela que invade museus e galerias de arte com os seus trabalhos, os quais evocam imagens abjetas: o cu, a nudez, o corpo trans que se veste (Lustosa, 2018)” ⁸
FABIANA FALEIROS
Hotspot
Lambe-Lambe
A seu lado, Hotspot, recorte da instalação performática Mastur Bar. Nela, a artista Fabiana Faleiros cria um cartaz lambe lambe que mostra um corpo de mulher com as pernas abertas e um símbolo de wi-fi que emana da buceta, do cu. Ponto de origem da geração e propagação das ondas que emanam do poder da buceta. Mastur Bar (2015 -2018) é um bar itinerante que organiza workshops, performances, além de uma coleção de objetos, todos voltados ao tema da masturbação feminina, justificando o trocadilho que nomeia o projeto.
FABIANA FALEIROS
Hotspot
Lambe-Lambe
Na fachada exterior do espaço, a artista Anitta Boa Vida pendurou uma faixa, em estilo propaganda, com a afirmação Eu quero votar pra presidentx!, trabalho criado para esta mostra. O trabalho tinha como contexto o golpe perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff, que foi destituída de seu cargo em 2016, por meio de impeachment político, processo iniciado por seu opositor e perdedor das eleições, Aécio Neves. Eu quero votar para presidentx! é também uma alusão ao texto de Zoe Leonard I want a dyke for president ⁹ ou, em tradução livre: Quero uma sapatão para presidente ⁹.
MAURICIO MAGAGNIN
Cruising, 2017
Instalação
Ativada na noite de abertura da mostra, a instalação Cruising (2017) de Maurício Magagnin, um imponente e acolhedor portal de balões rosas que atravessa a rua em frente ao espaço anunciava que a rua também é das bixas, das trans, das sapas e das manas.
TERTULIANA LUSTOSA
Bandeira BAFO 1, 2015
Do outro lado do salão, junto à parede onde estão disponibilizadas as cópias dos cordéis Sertransnejos e as placas matrizes de xilografia, a artista Tertuliana Lustosa estende sua Bandeira BAFO 1, 2015 que inscreve: Não se nasce mulher, torna-se traveca. Na obra, Tertuliana subverte a frase de Simone de Beauvoir presente em Segundo Sexo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Na releitura, a proposta é pensar a construção de um corpo que não se pretende mulher, mas travesti. A potência do trabalho se faz evidente nas próprias palavras de Tertuliana Lustosa (2016), em seu Manifesto Traveco-terrorista¹⁰:
“Corpos que se identificam com o gênero designado socialmente, habitantes da cisgeneridade, costumam afirmar-se enquanto normalidade. Não se tende a pensar, por exemplo, sobre a identidade de gênero de uma pessoa cisgênera, isso porque o seu teor colonialista em relação a corporeidades em desconformidade (pessoas transgêneres, bigêneras, agêneras, intersexuais, etc.) a abstém de qualquer discurso sobre a sua posição dentro do universo de outras práticas de gênero, deslegitimando inclusive a sua existência. As formas de apagamento de corpos fora do binarismo homem-mulher se dão por meio de uma constante tentativa de adequação dos corpos trans ao regime político da heteronorma antropocêntrica. A alçada sobre a questão de gênero construiu a ideia de sexo biológico e, muito marcado por essa colonialidade, o conceito de transexualismo concebeu-se, na medicina psiquiátrica, pela perspectiva de que algumas pessoas são patologias que necessitam de correção por métodos de intervenção corpórea (Lustosa, 2016, p.390)”. ¹⁰
COLETIVO XICA MANICONGO
Registro em vídeo da ocupação SerTransneja na Feira de São Cristóvão, 2017
CorrenteMILK, 2017 foi criada para ilustrar A lenda da trava leiteira¹¹, escritos literários da artista que investigam a lenda a partir da transição do próprio corpo e as mudanças entre o Piauí, onde recorre à lendas locais (Cabeça de Cuia e a lenda da lagoa do Parnaguá), e o Rio de Janeiro, onde relata ações estético-políticas de lutas trans no espaço urbano da cidade. Recomendável a leitura do texto de Tertuliana.
Registros da mostra: Frederico Pellachin
3. A sigla ACT UP significa AIDS Coalition to Unleash Power ou, em tradução minha, Coalizão para Libertação do Poder na luta contra a AIDS – movimento iniciado nos Estados Unidos no final dos anos 80 para demandar ação do governo federal com relação à epidemia de AIDS.
5. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Recife: Global Editora, 2003. p. 210.
8. LUSTOSA, Tertuliana. O olhar cortante nos objetos de Lyz Parayzo. 2018.
Arquivo de registros das obras presentes na mostra Os Corpos são as Obras na Despina em 2017.
Obras-corpo provoca pensar um trabalho de arte como uma materialidade inseparável da corporeidade que a concebe; que ainda que ela possa ganhar distância e autonomia como obra, ela estará sempre em relação com a pessoa criadora.
A organização do espaço expositivo da mostra Os corpos são as obras na Despina se deu de tal forma que o espectador começasse a experiência por alguns arquivos históricos de resistências transviadas, notadamente iniciada com a flâmula da Turma OK, para, então, navegar entre trabalhos que pensam as ações da presente década. Comecemos nossa visita “gayada” pela mostra.
Registros da mostra: Frederico Pellachin
A primeira obra que se avistava, ao entrar nos limites expositivos da mostra, era a flâmula do clube social Turma OK, um estandarte gentilmente cedido pela direção do espaço para a exposição. A peça, confeccionada em veludo azul, continha adornos dourados que compunham o nome Turma OK. Na última noite da exposição ativamos essa obra estandarte para ela que nos conduzisse em procissão/caminhada pelas ruas da Lapa em direção à noite de celebração no clube Turma OK. Partimos em procissão/caminhada do Despina até o Turma OK, isto é, do Saara à Lapa, onde aconteceu a cuidadosa cerimônia de devolução da flâmula para o presidente do clube, Carlos Salazar Pereira Viegas.
Turma OK é o espaço LGBTQI mais antigo do Brasil: criado em 1961, ele está em atividade desde então, com exceção do período entre os anos de 1969 e 1975, já que o local permaneceu fechado por conta das ameaças de violências repressivas e moralistas do período da ditadura militar.
Segundo o pesquisador Rogério da Costa, em sua dissertação Sociabilidade homoerótica masculina no Rio de Janeiro na década de 1960: relatos do jornal O Snob (2010), o nome “turma” era comumente usado nas décadas de 1950 e 1960 por desviados e entendidos, que promoviam encontros em apartamentos para fins de diversão e socialização, uma vez que esse tipo de reunião em locais públicos era socialmente rejeitado e reprimido pela polícia (Costa, 2010). Nas turmas – entre jantares, números de transformismo improvisados e encenações de teatro –, conformavam-se fortes laços de solidariedade. Para manter a discrição, necessária para não chamar a atenção dos vizinhos, os aplausos eram substituídos pelo estalar dos dedos (Costa, 2010). Além da Turma OK, existiram vários outros grupos na cidade do Rio de Janeiro. São exemplos: Turma do Catete, Turma da Glória, Turma de Copacabana, Turma da Zona Norte, Turma do Leme, Turma de Botafogo e o Grupo Snob (Costa, 2010).
Hoje instalado no sobrado de um pequeno prédio na Rua dos Inválidos, a casa promove reuniões e feijoadas entre os sócios. Ela também recebe convidados e apoiadores para eventos, espetáculos de variedades, nos quais shows de gogo boys e transformistas, novatas e veteranas, são a grande atração. Todo ano a casa elege o Rei e a Rainha Turma OK.
O encerramento da mostra foi comemorado na Turma OK, em uma noite especial em homenagem a travesti Luana Muniz.
“Arte é penetração e gozo”, diz uma das linhas do Manifesto de Arte Pornô do coletivo Gang e Eduardo Kac, publicado em maio de 1980 e distribuído durante a performance Intervenção na praia de Ipanema, em 1982, momento em que desfilaram palavras, poemas e corpos nus. O registro em vídeo preto e branco da performance Intervenção foi também exibido na parede oposta ao manifesto.
Através da pornografia, o coletivo provocava o strip tease das artes e do conservadorismo dos museus. Usando diversos meios – zines, panfletos, histórias em quadrinhos –, o grupo levava o poema pornô às ruas, à praia, às festas – em plena ditadura militar. Em Memória em disputa: Artes obscenas em foco (2016), a pesquisadora e curadora Fernanda Nogueira descreve o movimento:
“A partir da noção de ‘anti-tradição’, membros da Gang e do Movimento de Arte Pornô assumiram a poesia e a literatura como territórios a serem pervertidos por meio de um projeto burlesco e rebelde. Com o slogan “revolução e prazer”, tanto as ações quanto os poemas procuravam criar um léxico, uma “gramática libidinal” para “liberar a sensualidade, subverter a linguagem e incorporar as minorias” (Nogueira, 2016, p. 121).
Segundo Nogueira (2016), o Movimento de Arte Pornô ocupava o território artístico para criar acontecimentos transitórios, que intencionavam modificar, pela performance, o panorama social. Entre poemas e intervenções sonoras e corporais, o movimento intentava dizer que não existe “palavra que não mereça ser usada, da mesma forma que não existe zona do corpo que deva ser censurada” (Nogueira, 2016, p. 122).
Virando a esquina do Movimento de Arte Pornô, trinta e seis edições do jornal Lampião da Esquina eram expostas organizadas cronologicamente. As edições originais, gentilmente cedidas pelo Grupo Arco-Íris do Rio de Janeiro, se encontravam em estado bastante deteriorado, e por isso foram cuidadosamente envolvidas por envelopes plásticos. Reproduzimos também fac-símiles de quatro diferentes números do jornal, para que os visitantes pudessem manusear e interagir com os conteúdos dessas edições do jornal.
O Lampião da Esquina foi um jornal mensal que circulou nas bancas de todo o Brasil entre os anos de 1978 e 1981 – período do dito ‘abrandamento’ da ditadura militar. Com tiragem aproximada de 15.000 exemplares, em suas 38 edições, a publicação era parte da chamada imprensa alternativa, que se autodenominava ‘homossexual’, e tratou, com profundidade jornalística, de questões políticas urgentes relativas à repressão e à liberdades não somente das populações ‘gueis’ (formação predominante do seu conselho editorial), mas também de travestis, lésbicas, negrxs, mulheres e ameríndias.
O Lampião é documento vivo do início da articulação e da formação de muitos grupos e movimentos ativistas ‘desviados, entendidos’ e feministas, em São Paulo, Rio de Janeiro e outras regiões do país. Em suas páginas estavam presentes também questões que vão da masculinização das bichas a mapas de pegação sexual no centro de São Paulo, da perseguição a frequentadores de cinemas pornô à matança sistemática das travestis, da literatura lésbica de Cassandra Rios e da música de Leci Brandão às artes de Ney Matogrosso e Darcy Penteado.
No editorial de sua primeira edição, de abril de 1978, o jornal anunciava sua posição política sobre a questão homossexual, defendendo que: “É preciso dizer não ao gueto, e, em consequência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem-padrão que se faz do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência sexual como uma espécie de maldição […] o que LAMPIÃO reivindica em nome dessa minoria é não apenas se assumir e ser aceito – o que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades construídas em bases machistas lhes negou: o fato de que os ‘homossexuais’ são seres humanos. […] Pretendemos, também, ir mais longe, dando voz a todos os grupos injustamente discriminados – dos negros, índios, mulheres, às minorias étnicas do Curdistão: abaixo os guetos e o sistema (disfarçado) de párias” (Lampião, 1978).
Forma da Liberdade consiste em um enorme triângulo rosa invertido, pintado em parede ou fachada, que funciona como palco de fundo para cartazes impressos em papel jornal e disponibilizados gratuitamente. Carlos Motta utiliza o triângulo rosa como símbolo de liberdade para apresentar uma cronologia de eventos, tragédias e conquistas sexo dissidentes, colocados em relação à história do triângulo rosa do holocausto – trazendo à tona o pouco abordado genocídio de homossexuais e transvestigêneres pelos nazistas.
O triângulo, em diferentes cores e formatos, foi o símbolo utilizado pelos nazistas para identificar as razões pelas quais as pessoas foram feitas prisioneiras dos campos de concentração. O símbolo era costurado nos uniformes dos detentos. Triângulos cor de rosa eram usados para sinalizar homossexuais masculinos, mulheres trans, pedófilos, zoofílicos e estupradores. Já triângulos pretos eram usados para identificar mulheres feministas, lésbicas, alcoólicos, prostitutas e anarquistas.
Em colaboração com o artista investigamos fatos, violências e atos de resistência transviadas ao longo da história do Brasil, para serem, então, entremeadas com eventos do norte ocidental e as histórias do triângulo rosa e o uso do triângulo rosa invertido, que se tornou famoso por ter sido ressignificado pelo coletivo ACT UP 1A sigla ACT UP significa AIDS Coalition to Unleash Power ou, em tradução minha, Coalizão para Libertação do Poder na luta contra a AIDS – movimento iniciado nos Estados Unidos no final dos anos 80 para demandar ação do governo federal com relação à epidemia de AIDS., em Nova Iorque no final dos anos 1980, para marcar a luta contra a crise pandêmica da AIDS: silêncio = morte.
A cronologia de Forma da Liberdade está disponível na íntegra e em formato expandido, sendo constantemente atualizada, aqui, nesta publicação.
Os resultados da investigação deram a ver os desenvolvimentos das resistências nas ruas e a conformação de guetos protegidos, redes subterrâneas, em periódicos e publicações marginais, organizações coletivas de militância e movimentos identitários LGBTI+. Procuramos destacar também, em grande medida, como a resistência tinha lugar nas artes do teatro, dos carnavais, dos bailes, das práticas transformistas – dos closes travestis às confusões de gênero do grupo teatral Dzi Croquetes e Vivencial Diversiones.
Era preciso buscar um ponto de partida que marcasse que nem o Brasil, tampouco as práticas denominadas pelos europeus de sodomitas, tiveram início com a invasão e a colonização portuguesa. Mas a condenação e a criminalização da sodomia, sim, tiveram início com a tomada das terras e dos povos originários: homofobia colonial. Na tese Decolonizando sexualidades: Enquadramentos coloniais e homossexualidade indígena no Brasil e nos Estados Unidos2Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/19269, o cientista social Estevão Fernandes investiga os processos de subalternização das sexualidades dos povos originários, e como aparatos religiosos-estatais criaram mecanismos para normalizar seus comportamentos considerados desviados. Aparatos coloniais de repressão que viriam a complementar, como logo vamos ver na genealogia de Foucault, o dispositivo da sexualidade (Foucault, 1998).
Assim, no primeiro registro de Formas da Liberdade sobre o Brasil se lê: “1500 – A prática da sodomia e sua condenação (1530) é trazida por colonizadores europeus para o Brasil. A prática encontra aqui terreno fértil pois era grande a liberdade nas práticas sexuais dos povos nativos”3Referência extraída de FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Recife: Global Editora, 2003. p. 210. Uma premissa relevante para entendermos como a prática da sodomia não foi trazida nas caravelas portugueses, foi a sua condenação moral que veio da Europa. Da mesma forma, séculos mais tarde, aportaria por aqui a ideia do sujeito homossexual e seu caráter patológico.
Nesse sentido, como aponta a artista Hija de Perra (2014), marcadores sociais de subalternidade foram se instaurando por estas terras, amparados pelo olhar do colonizador “os homens indígenas como seres selvagens afeminados por conta da sua ornamentação e às mulheres como fogosas por terem parte dos corpos desnudos”.
Os resultados dessa investigação tiveram origem nos mais diversos meios: blogs da internet, notícias de jornais, conversas na mesa do bar com Indianara e outras trans finíssimas, edições do jornal O Lampião da Esquina, incursões no clube social Turma OK. Além, é claro, de obras essenciais que narram historias transviadas no Brasil. Cito algumas: Devassos no Paraíso (1986), de João Silvério Trevisan, obra magistral que narra historias com foco nas artes do corpo; Ditadura e homossexualidades: Repressão, Resistência e a Busca da Verdade (2014), livro fruto da Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura militar, editado por Renan Quinalha e James Green; e Para além do carnaval – A homossexualidade masculina no Brasil do século XX (2000), de James Green.
Informações, fatos e relatos que longe de dar conta de todos os acontecimentos transviados da história brasileira, aponta para a necessidade de realização de um trabalho continuado e sistematizado de salvaguarda dessas violências, e dos sucessivos atos de resistência, e ainda mais salvaguarda das potências emanadas de todos os corpos desviados.
Já o artista Kleper Reis apresentou dois trabalhos inter-relacionados de seu extenso projeto CU É LINDO. Nas imagens do CAP. 2: A Pedagogia do Cu, VERS. 2: Os Três Movimentos (criação-conservação-destruição), o artista mostra um processo de geração de vida a partir de compostagem gerada pelas próprias fezes.
Ao lado, na instalação CAP. 3: A Cura Gay, VERS. 1: Omolu ou O Curador Ferido ou presente-passado-futuro, um conjunto de ervas e plantas, cultivado a partir da compostagem gerada pelo próprio artista, era entremeada por sequências de pérolas que desenhavam no solo CU É LINDO, estrofe de um dos poemas de Adélia Prado.
Ao evocar a potência do cu, Kleper evidencia a ideia do desprezo imbuído na privação de “tudo que gera vida. Tudo que une. Tudo que é representação de vitalidade, de potência” (Reis apud Altmayer, 2016, p.84). O artista propõe pensar o corpo a partir do que se coloca na boca e de que maneira o tratamento de seus resíduos pode ser um primeiro movimento do ser criativo. “O primeiro movimento do ser criativo é se apropriar dos recursos geradores de sua vida. O primeiro movimento do ser criativo é plantar aquilo que se come. É a autonomia alimentar” diz o artista (Reis apud Altmayer, 2016, p.86).
Em Indumento Manicure N.I., sublimação confeccionada em poliéster, Ana Matheus Abade veste o próprio corpo com um traje que leva gravado UNHA NAVALHA, e que dialoga com o outro trabalho apresentado, que ativou NAVALHA: Manicure Show. Ana veste um uniforme manicure que abre um diálogo entre práticas artísticas e o ofício de manicure, cuidando e lapidando unhas como navalhas, objetos cortantes de defesa pessoal, satisfação sensorial e desnormatização do corpo.
Victor Arruda – um dos primeiros artistas brasileiros a abordar politicamente temas como gênero e homossexualidade, além do machismo e racismo em suas pinturas na década de 1970 – mostra um de seus trabalhos da série Unhas e Mamilos. Na obra, Victor retrata a conexão entre corpos, corpos com peitos de pau, mamilos que conectam e desconectam e fazem emergir grandes mãos que acariciam, mamilos, picas, e olhos que nos miram fixamente.
Com a gilete debaixo da língua, a artista Lyz Parayzo exibe o colar Concertina Popcreto, parte de sua série Joias Bélicas. Um ornamento futurista para um pescoço desejoso de fetiche e proteção, que camufla, mas quer dar a ver que porta uma arma, um instrumento de defesa, ou a possibilidade de um ataque eminente. As palavras de Tertuliana Lustosa em O olhar cortante nos objetos de Lyz Parayzo (2018) complementam o olhar sobre a obra de Lyz:
“[…] A imagem aberta por Lyz Parayzo dialoga com o interdito e o desejo, discutindo sobre questões que estão entre o íntimo fetiche e o público visível, entre o sexo e a autodefesa. […] O corpo violado é um fetiche que objetifica a mulher e o feminino e que vem sendo discutido na obra de Lyz, desde que assume sua persona artística da Putinha Terrorista – aquela que invade museus e galerias de arte com os seus trabalhos, os quais evocam imagens abjetas: o cu, a nudez, o corpo trans que se veste (Lustosa, 2018)”
A seu lado, Hotspot, recorte da instalação performática Mastur Bar. Nela, a artista Fabiana Faleiros cria um cartaz lambe lambe que mostra um corpo de mulher com as pernas abertas e um símbolo de wi-fi que emana da buceta, do cu. Ponto de origem da geração e propagação das ondas que emanam do poder da buceta. Mastur Bar (2015 -2018) é um bar itinerante que organiza workshops, performances, além de uma coleção de objetos, todos voltados ao tema da masturbação feminina, justificando o trocadilho que nomeia o projeto.
Na fachada exterior do espaço, a artista Anitta Boa Vida pendurou uma faixa, em estilo propaganda, com a afirmação Eu quero votar pra presidentx!, trabalho criado para esta mostra. O trabalho tinha como contexto o golpe perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff, que foi destituída de seu cargo em 2016, por meio de impeachment político, processo iniciado por seu opositor e perdedor das eleições, Aécio Neves. Eu quero votar para presidentx! é também uma alusão ao texto de Zoe Leonard I want a dyke for president ou, em tradução livre: Quero uma sapatão para presidente.
Ativada na noite de abertura da mostra, a instalação Cruising (2017) de Maurício Magagnin, um imponente e acolhedor portal de balões rosas que atravessa a rua em frente ao espaço anunciava que a rua também é das bixas, das trans, das sapas e das manas.
Do outro lado do salão, junto à parede onde estão disponibilizadas as cópias dos cordéis Sertransnejos e as placas matrizes de xilografia, a artista Tertuliana Lustosa estende sua Bandeira BAFO 1, 2015 que inscreve: Não se nasce mulher, torna-se traveca. Na obra, Tertuliana subverte a frase de Simone de Beauvoir presente em Segundo Sexo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Na releitura, a proposta é pensar a construção de um corpo que não se pretende mulher, mas travesti. A potência do trabalho se faz evidente nas próprias palavras de Tertuliana Lustosa (2016), em seu Manifesto Traveco-terrorista:
“Corpos que se identificam com o gênero designado socialmente, habitantes da cisgeneridade, costumam afirmar-se enquanto normalidade. Não se tende a pensar, por exemplo, sobre a identidade de gênero de uma pessoa cisgênera, isso porque o seu teor colonialista em relação a corporeidades em desconformidade (pessoas transgêneres, bigêneras, agêneras, intersexuais, etc.) a abstém de qualquer discurso sobre a sua posição dentro do universo de outras práticas de gênero, deslegitimando inclusive a sua existência. As formas de apagamento de corpos fora do binarismo homem-mulher se dão por meio de uma constante tentativa de adequação dos corpos trans ao regime político da heteronorma antropocêntrica. A alçada sobre a questão de gênero construiu a ideia de sexo biológico e, muito marcado por essa colonialidade, o conceito de transexualismo concebeu-se, na medicina psiquiátrica, pela perspectiva de que algumas pessoas são patologias que necessitam de correção por métodos de intervenção corpórea (Lustosa, 2016, p.390)”.
CorrenteMILK, 2017 foi criada para ilustrar A lenda da trava leiteira, escritos literários da artista que investigam a lenda a partir da transição do próprio corpo e as mudanças entre o Piauí, onde recorre à lendas locais (Cabeça de Cuia e a lenda da lagoa do Parnaguá), e o Rio de Janeiro, onde relata ações estético-políticas de lutas trans no espaço urbano da cidade. Recomendável a leitura do texto de Tertuliana.
notas [ + ]
1. | ⇧ | A sigla ACT UP significa AIDS Coalition to Unleash Power ou, em tradução minha, Coalizão para Libertação do Poder na luta contra a AIDS – movimento iniciado nos Estados Unidos no final dos anos 80 para demandar ação do governo federal com relação à epidemia de AIDS. |
2. | ⇧ | Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/19269 |
3. | ⇧ | Referência extraída de FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Recife: Global Editora, 2003. p. 210 |