Forma da liberdade


Forma da liberdade
Por: Carlos Motta e Guilherme Altmayer
A cronologia Forma da Liberdade recompila a história do triângulo rosa e outros emblemas de movimentos pelos direitos homossexuais no Brasil, Estados Unidos e Europa. São incluídos eventos importantes da história do ativismo homossexual, com ênfase no triângulo rosa como símbolo de liberação sexual. Pesquisa e compilação internacional por Carlos Motta e brasileira por Guilherme Altmayer.
“Os poderes mortos estão por todo lado – na floresta, cortando as canções; a noite na paisagem industrial, desperdiçando e endurecendo a nova vida; nas ruas da cidade, jogando fora o dia. Queríamos algo diferente para nossa gente: não encontrar uma velha e reacionária república, cheia de medos fantasmagóricos, medos da morte e medos de nascer. Queremos algo diferente” Muriel Rukeyser, A vida de poesia
Triângulo
Uma forma geométrica básica: um polígono de três lados ou vértices e três lados ou cantos, segmentos de linha.
Um emblema: uma imagem pictórica, abstrata ou representacional, que representa um conceito, como uma verdade moral ou uma alegoria.
Um símbolo: algo que representa uma ideia mas é distinto dela e sua proposta é comunicar significado.
Triângulo: uma forma, um emblema, e um símbolo de opressão e liberação: uma forma de liberdade.
Áudio da cronologia Forma da Liberdade no Campo Sonoro da 32a Bienal de São Paulo, 2016, lida por Guilherme Altmayer.
Uma linha do tempo:
1500
A prática da sodomia e sua condenação (1530) é trazida por colonizadores europeus para o Brasil. A prática encontra aqui terreno fértil pois era grande a liberdade nas práticas sexuais dos povos nativos.¹
1830
O Brasil descriminaliza a prática do sexo anal criminalizada por Portugal em 1530, ao não incluir no código penal do Império do Brasil qualquer referência a sodomia.²
1867
Em 29 de agosto de 1867, Karl-Heinrich Ulrichs se torna o primeiro homossexual a se proclamar como tal e falar publicamente sobre direitos homossexuais ao reivindicar ao congresso alemão de juristas em Munique por uma anulação das leis anti-homossexuais.
1895

É publicada a obra Bom Criolo, o primeiro romance homossexual do mundo ocidental. Escrito por Adolfo Caminha, a novela trata da difícil relação entre dois membros da marinha, um negro foragido da escravidão e um grumete branco.
Fonte: Acervo Sânzio de Azevedo
1900
Nasce João Francisco dos Santos ou Madame Satã. Negro, pobre e assumidamente homossexual, morava e trabalhava como performista, cozinheiro e segurança na boêmia região da Lapa no Rio de Janeiro. Foi preso diversas vezes por furto, ultraje público ao pudor e porte de arma.³
1910
A ativista norte-americana Emma Goldman é a primeira a falar publicamente a favor de direitos homossexuais em seus discursos e textos.
1924
É fundada em Chicago a Sociedade de Direitos Humanos, primeira organização pelos direitos dos homossexuais. O movimento existiu por alguns meses antes de ser fechado pela polícia.
1934
É criada uma divisão secreta da polícia alemã para tratar com homossexuais. Um dos seus primeiros atos foi demandar “listas rosas” ao redor da Alemanha. Estas listas, que revelavam nomes de homossexuais masculinos, são compiladas desde 1900.
1935
O parágrafo 175 do código criminal alemão, que condenava práticas homossexuais, foi revisado por Adolf Hitler para incluir beijos, abraços, fantasias gays e atos sexuais entre homens.
1937-1940

25,000 gays condenados são presos forçadamente e levados a campos de concentração onde foram obrigados a usar um triângulo rosa invertido em seu uniforme. Durante os 12 anos do regime nazista, ao redor de 100.000 homens foram identificados em registros policiais como homossexuais, sendo 50.000 deles condenados por violar o parágrafo 175. Se fossem judeus gays, o nível mais baixo nos campos, eles usavam o triângulo invertido sobre a estrela de davi amarela.
1942
Hitler determina a morte como punição a homossexuais.
1946
Rudolf Klimmer, defensor radical dos direitos homossexuais na Alemanha Oriental pressiona a Organização dos Perseguidos pelo Regime Nazista para reconhecer as vítimas homossexuais e mais tarde conseguiu que fossem compensados pelo governo da Alemanha Oriental.
1948
Formado na Dinamarca o grupo homofílico Forbundet af 1948 (Liga de 1948)
1950s

Flâmula do Clube Turma OK
Nas décadas de 1950 e 1960 no Rio de Janeiro e São Paulo, encontros homossexuais aconteciam nas chamadas turmas, reuniões secretas em apartamentos para socialização e transformismo. A Turma OK, ainda em funcionamento no Rio de Janeiro, é hoje um clube para socialização e espetáculos transformistas. ⁴
1950
Fundado em Los Angeles The Mattachine Society, o primeiro grupo homofílico norte-americano. Em São Francisco é fundado o The Daughters of Bilitis, organizacão lésbica nacional pioneira. É formado o RFSL (Federacão Sueca para direitos das lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) na Suécia.
1962
A polícia do Rio de Janeiro proíbe o uso de “fantasia de travesti”. No carnaval de 1964, a polícia agride foliões com golpes de cassetete na entrada de bailes que
Os corpos são as obras


Vera Lucia Santos com Antonio Manuel. Fonte: Artur Freitas.
Os corpos são as obras
Por: Guilherme Altmayer e Pablo León de la Barra
Em 1970, na abertura do 19º Salão Nacional de Arte Moderna (MAM-RJ), o artista Antonio Manuel se despiu e desfilou seu corpo nu pelo espaço, para apresentar seu corpo como uma obra que, mesmo não sendo selecionada pelo juri, ficou marcada como protesto contra as ações repressivas da ditadura militar – “um exercício experimental da liberdade”, nas palavras do crítico de arte Mário Pedrosa. Desde então, muitas foram as narrativas criadas em torno de “o corpo é a obra”, porém poucas mencionam que o artista executou a ação ao lado de outro corpo, semi nu: o de uma mulher, negra, de nome Vera Lúcia Santos.
Enquanto isso, do outro lado da rua, a Divisão de Censuras da Diversão Pública (DCDP) proibia explicitamente a participação de travestis em espetáculos e bailes de carnaval, entre outras ações repressivas executadas para garantir a preservação da “moral e bons costumes”, valores reacionários que alicerçam a “família-cristã”. Na literatura, a escritora Cassandra Rios teve 36 de suas obras censuradas sendo duramente perseguida. Na televisão, o programa ‘Denner é um luxo’ foi vetado por ser, segundo documento oficial, “tóxico para a juventude e que falta firmeza homérica em sua ausência total de masculinidade”.
Desde então, muita coisa mudou, mas nem tanto assim. Neste encontro estão presentes corpos sobre os quais regimes ditatoriais nunca deixaram de incidir, em diferentes medidas e desmesuras. Ditaduras que ganham novas formas, acobertadas pela falácia de uma democracia que serve ao patriarcado branco. Corpos atravessados por práticas normativas de uma sociedade classista, racista, patriarcal, machista, homolesbobitransfóbica que insiste em controlar nossos afetos, bucetas e cus.
Assim sendo, este encontro propõe um diálogo entre algumas propostas dos anos 1970 e 1980 e uma geração de artistas e ativistas no Rio de Janeiro de hoje, trabalhando e repensando a ideia dos corpos-obra e obras-corpo como ferramenta política para desestabilizar normas e discursos hegemônicos. O título da exposição, que pluraliza o nome da obra a partir da qual esse debate é proposto, convoca a pensar em todos os corpos invisibilizados pela história, incluindo os muitos que não estão aqui presentes ou representados, pela história como ela nos foi contada.
Um chamamento à navegação por entre-lugares de corpos nus, cronologias de liberdade, jornais, zines, canais de YouTube, lambe-lambes, reforçadores de unhas, manifestos, pinturas, faixas e cartazes, colares, pós-pornografia, cordéis, práticas do corpo, quadrilha junina, técnicas de autodefesa, práticas de naturismo, pornopiratarias, perfomatividades e troca de afetos.
Por meio de proposições que nos convocam a pensar dissidências como potências representativas de resistências estéticas – enquanto movimentos de (re)fazer a si próprix, a um só tempo singular e múltiplo – passados e futuros se fazem presentes, em propostas polimórficas que confrontam e violam discursos normativos como ferramenta descolonizadora dos próprios corpos: ações micropolíticas de configuração de subjetividades transviadas.
Depressa, por favor, é tarde!
English version:
In 1970, at the opening of the 19th Modern Art National Salon at the Museum of Modern Art, MAM-RJ, the artist Antonio Manuel, undressed and catwalked naked through the space, presenting his own body as an art piece. Even though he was not selected by the jury, it remained as a protest against repressive actions of the military dictatorship – “an experimental exercise of freedom”, according to art critic Mário Pedrosa. Since then, many were the narratives created around “the body is the piece” – although very few of them mention that the artist performed side by side with another semi nude body: that of Vera Lúcia Santos, a black woman.
Meanwhile, across the street, the Public Entertainment Censorship Division,
explicitly prohibited the participation of transvestites in theatre performances and carnival balls, amongst other repressive actions which were executed in order to guarantee the preservation of moral and
good customs – reactionary values that are the foundation of the “christian Family”. At the same time, writer Cassandra Rios, had thirty six of her books censored and she was severely persecuted. The TV show ‘Denner é
um luxo’ (“Denner is a lux”) was cancelled because, according to an oficial document – “it is toxic for the youth and lacks strength due to total absence of masculinity.”
Since then, a lot has evolved, but not so in many cases. In this encounter, we gather bodies that are consistently controlled by a dictatorial regime that never ceased to exist. Dictatorships that gain new forms, protected by the fallacy of a democracy that serves the white patriarchy. Bodies crossed
by normative practices of a class-ridden, racial, patriarcal, chauvinistic, homo-lesbo-bi-trans-phobic society that insists in controlling our affections, pussies and arses.
Therefore, this meeting proposes a dialogue between
Ocupação Sertransneja


Ocupação Sertransneja
Por: coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem
Junho de 2017. A noite de abertura de Os Corpos são as Obras foi ocupada pelo coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem para uma noite Sertransneja com quadrilha travesti e leitura de cordéis.
SerTransneja Balaiera
Travesti que é balaieira
Roda no maracatu
e resiste com o corpo do balaio
Na flor do caju
Travesti é ser vivente
da sobrevida do sertão
enfrentar ódio indolente
é mais que aperreio, bala e facão
Foram chamar as trava da peste
Que é que há se eu vim do norstes
eu vim de lá
eu vim de lá
Roda balaieira
Vai rodando sem parar
Vai rodando no balaio
Na flor do maracujá
Axé maracatu elétrico
Axé meu povo nagô
Axé as trans de Aracatiaçu
Dança dança meu amor
(Tertuliana Lustosa e Wescla Vasconcellos)
Eu escolhi ser de verdade, e isso me faz grande nobre e real.
E embora, as vezes, dói menos que ficar,
Não sou do tipo orgulhosa, mas devo admitir, que desta vez eu tenho razão,
Não consigo levantar, caminhar, em direção ao desconhecido.
Conhecida sim, é a felicidade.
Vocês me deixam atordoados, e anestesiada,
Afinal de contas, na minha frente, estão apenas corpos caídos
Identificados como meu futuro
E eu escolhi ser de verdade,
E isso me faz grande nobre e real.
Sou Francisco, sou João, sou José, sou grito, sou a força, sou amor, sou a fé, sou o espírito revolucionário, sou Laruê do Exú, sou a negra, africana, sou o frevo, sou o sol potiguar, sou atriz, sou escrava, sou rainha, sou Maria, sou Joana, sou a Xica, que vive na ladeira da misericórdia, sou apenas cabelereira e PUTA.
Governo, você vai ter que admitir,
a minha sobrevivência.
Quadrilha Setransneja promovida pelo coletivo Xica Manicongo
Junho de 2017. A noite de abertura de Os Corpos são as Obras foi ocupada pelo coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem para uma noite Sertransneja com quadrilha travesti e leitura de cordéis.
SerTransneja Balaiera
Travesti que é balaieira
Roda no maracatu
e resiste com o corpo do balaio
Na flor do caju
Travesti é ser vivente
da sobrevida do sertão
enfrentar ódio indolente
é mais que aperreio, bala e facão
Foram chamar as trava da peste
Que é que há se eu vim do norstes
eu vim de lá
eu vim de lá
Roda balaieira
Vai rodando sem parar
Vai rodando no balaio
Na flor do maracujá
Axé maracatu elétrico
Axé meu povo nagô
Axé as trans de Aracatiaçu
Dança dança meu amor
(Tertuliana Lustosa e Wescla Vasconcellos)
Eu escolhi ser de verdade, e isso me faz grande nobre e real.
E embora, as vezes, dói menos que ficar,
Não sou do tipo orgulhosa, mas devo admitir, que desta vez eu tenho razão,
Não consigo levantar, caminhar, em direção ao desconhecido.
Conhecida sim, é a felicidade.
Vocês me deixam atordoados, e anestesiada,
Afinal de contas, na minha frente, estão apenas corpos caídos
Identificados como meu futuro
E eu escolhi ser de verdade,
E isso me faz grande nobre e real.
Sou Francisco, sou João, sou José, sou grito, sou a força, sou amor, sou a fé, sou o espírito revolucionário, sou Laruê do Exú, sou a negra, africana, sou o frevo, sou o sol potiguar, sou atriz, sou escrava, sou rainha, sou Maria, sou Joana, sou a Xica, que vive na ladeira da misericórdia, sou apenas cabelereira e PUTA.
Governo, você vai ter que admitir,
a minha sobrevivência.