Podre de Chique: retrospectiva extraordinária de Adir Sodré
Podre de Chique: retrospectiva extraordinária de Adir Sodré
Curadoria: Guilherme Altmayer e Leno Veras
Paço Imperial – Rio de Janeiro
20 de julho a 23 de outubro de 2022.
Bemvindes ao extraordinário universo pictórico de Adir Sodré (Rondonópolis, MT, 1962 – Cuiabá, MT, 2020). Nesta mostra estão reunidas diversas obras até hoje inéditas do público, presentes em relevantes coleções brasileiras que, desde cedo, reconheceram a importância deste artista mato-grossense, que reúne aqui sua primeira, e muito merecida, retrospectiva: como se diz em Cuiabá, podre de chique.
Propositalmente organizada de forma não linear quanto a sua cronologia, esta exposição busca reconstituir a complexidade da trajetória deste agente crítico cuja radicalidade carece de visibilidade e maior reconhecimento, tamanha a continuada urgência dos temas que manifesta nas dezenas de obras museológicas, bibliográficas e arquivísticas aqui reunidas, nucleadas ao redor de cinco proposições conceituais: Cuyaverá (Cuiabá), Tapa na cara pálida (horrores da branquitude), Ditos e Malditos (imundos das artes), O Pop não poupa ninguém (cultura de massas) e Manifestos Paus, Brasil! (fabulações estético-eróticas).
Ao som de artistas como a berlinense Nina Hagen e a sul-mato-grossense Tetê Espíndola, Adir pintou, freneticamente, por mais de quarenta anos, toda sorte de superfícies que encontrava, inclusive telas, muitas das quais se reencontram neste conjunto universo. Sodré se contrapunha fortemente à ideia de regionalização, abordando desde o contexto local cuiabano a universalidade das questões que atravessam os campos social, político e econômico do Brasil (também sob ditadura militar) e do mundo, em sua complexidade ascendente desde o final dos anos 1970: como elucida Aline Figueiredo, uma de suas principais interlocutoras, se o mundo é redondo, qualquer ponto é um ponto – o “centro” não passa de insegurança colonial.
Guiados numa viagem por rios caudalosos povoados por criaturas fantásticas – celebridades espetaculares, transformistas icônicas, milicos e cânones – experimentamos múltiplas perspectivas, debochadas e irônicas, sobre temas tão complexos como os delírios imperialistas do branco invasor que objetifica e aniquila as populações originárias, enquanto dá as costas para a devastação da fauna e flora dos mais importantes biomas brasileiros, ou os jogos de poder no campo das artes (frente ao qual foi sempre insubmisso); além, é claro, dos ímpetos desejantes de liberdade de gêneros e sexualidades; com Picassos e Matisses, Tarsilas e Divines, como pano de fundo para extravagantes ficções. Para Adir, se Freud explica, Olga del Voga (analista argentina performada por Patrício Bisso) intriga.
Cuyaverá
Cuyaverá, uma das possíveis origens do nome Cuiabá, importante capital da região Centro-oeste do Brasil, é ponto de encontro dos mais importantes biomas brasileiros – Pantanal, Amazônia e Cerrado, e terra de indígenas Coxiponés, Bororos, e muitas outras etnias, tantas delas dizimadas, como os Paiaguás, por ser destino distópico de sanguinários bandeirantes. Também foi a terra que acolheu Adir Sodré – nascido na vizinha Rondonópolis – ainda em sua adolescência, e de onde o jovem artista nunca mais arredou os pés. Ali, aos 15 anos, iniciou sua incursão na pintura via Ateliê da Fundação Cultural de Mato Grosso – orientado por Humberto Espíndola e Dalva de Barros, personalidades essenciais para a gestação de muitos artistas mato-grossenses – retratando os cotidianos da cidade, com foco atento à precariedade do bairro pobre denominado Pedregal, local onde sua família se instalou e residiu por décadas. A paisagem cuiabana e suas populações (manicures, engraxates, primeiras damas…), sob a volúpia de um sol implacável, tornam-se cenário e atores para suas crônicas visuais – futxicaiadas nas quais descreve paisagens culturais da capital, e denuncia da corrupção à miséria, indissociáveis dramas brasileiros, com a audácia de poucos.
Tapa na cara pálida
Apesar do reconhecimento internacional que obteve, tendo participado de mostras em Goiânia (onde performou com a cantora germânica Nina Hagen, uma de suas musas inspiradoras), Nova Iorque, Paris, e Tóquio, Adir não tinha interesse em se deslocar do seu epicentro, região que também é reconhecida como coração geodésico da América do Sul. Sodré retrata de forma extravagante como os ecossistemas de transição entre o Cerrado e a Amazônia, porta de entrada do Pantanal – todos já e processo de devastação (assim como os povos originários que lá habitam) – são ameaçados, há mais de quinhentos anos, pelos múltiplos imperialismos que assolam estes mananciais de vida primordiais. Objetificadas por ávidos homens brancos, sob as formas grotescas de caçadores de peles, ou turistas consumidores, as populações autóctones foram representadas de forma contundente pelo artista, ainda na década de 80 – horrores dos zoológicos humanos modernos, e contemporâneos, cuja finalidade é o regozijo perverso do imaginário europeu, e norte-americano, além do deleite dos neo-colonizadores sul-sudestinos.
Ditos e malditos
Consciente dos podres poderes que permeiam tanto a arquitetura do sistema operativo das artes, quanto a engenharia das políticas ditatoriais militares, Adir retratava, de forma propositalmente ácida e absolutamente insubmissa, um elenco de personalidades com quem se relacionava via dinâmica de coalizão e colisão
As ações estético-políticas de enfrentamento direto de Indianarae Siqueira
Imagem: Indianarae na rua Nossa Senhora de Copacabana durante a marcha das Vadias de 2012. Fonte: Iconoclastia Incendiária ¹
As ações estético-políticas de enfrentamento direto de Indianarae Siqueira
Por: Guilherme Altmayer
Uma reflexão sobre o trabalho de Indianarae Siqueira, que cunhou o termo transvestigênere, e como sua ação estético-política de enfrentamento direto, que consiste em expor os seios em locais públicos para ser detida pela polícia, revela como não somos todos iguais perante a lei e as consequências violentas na invisibilização de pessoas trans. A partir destes enfrentamentos performáticos Indianarae configura contracondutas, contrassexualidades que propõem modos de vida outros, e expõem as falhas dos dispositivos que insistem em controlar os corpos, especialmente os não normativos.
Indianarae Siqueira mostra como, a partir de uma ação estético-política tão simples quanto colocar os peitos para fora em lugares públicos, ela estremece as bases e normas que influenciam nas regras jurídicas para homens e mulheres, supostamente iguais perante a lei. A ação revela as injustiças do tratamento desigual dado às identidades binárias de gênero e também às pessoas que transitam entre eles, as pessoas transvestigênere, termo por ela cunhado. Pensando a partir do conceito de contrassexualidade de Paul B. Preciado (2002), Indianarae está identificando espaços errôneos, falhas na estrutura e reforçando o poder do desvio, da deriva frente a um sistema heterocentrado. As reflexões políticas e artísticas aqui presentes são originadas dos relatos e conversas com Indianarae, que aconteceram em 2015 durante a pesquisa Tropicuir: (Re)existências politicas nas ações performáticas de corpos transviados no Rio de Janeiro ² que se dedicou a investigar ações estético-políticas transviadas ³ de quatro artistas-performers-ativistas no Rio de Janeiro.
Do poder que é exercido em nosso corpo, diz Michel Foucault, “emerge inevitavelmente a reivindicação do próprio corpo contra este poder” (FOUCAULT, 1993, p.146). Podemos entender o corpo como uma ferramenta que, ao tomar consciência dos efeitos dos dispositivos que o atravessam e o constituem – família, escola, governos, medicina, psicologia, instâncias jurídicas e religião –, torna-se capaz de se apropriar e manipular estes mecanismos para se converter em uma máquina produtora de novos sentidos, novos territórios de ocupação contranormativos e insubordinados como a ação executada por Indianarae. Ao reconhecer a atuação destes dispositivos como mecanismos de produção de verdades – identitárias e socialmente segregadoras – abrimos o caminho para que, através da crítica, possam ser revelados e desconstruídos. A arte tem papel fundamental neste processo de criação de novas formas de saberes do corpo, ao contar, nas ações performáticas a partir dele geradas, com um canal de expressão polimorfo para existências ambíguas, indefinições e questionamentos.
“Pessoa normal de peito e pau”. Assim descreve a si mesma Indianarae Siqueira, uma pessoa que diz não ter mais interesse em se definir, se classificar como mulher ou homem, e para isso trabalha para que identidades de gênero e sexo não sejam demandadas em locais como um simples documento de identidade, documento que para pessoas trans é fonte de violência pois não representa o nome social por elas definido. Ao se definir como pessoa de peito e pau, Indianarae assume uma postura que rejeita a identidade a partir de traços biológicos, a partir da maneira como interpreta seu próprio corpo em contraponto às formas como ele é visto, ou se torna invisível legalmente. Indianarae quer se colocar fora do plano de inteligibilidade das definições usuais de gênero, se distanciando criticamente das normas e articulando um lugar próprio, ou um não lugar, a partir de um estado de indefinição (BUTLER, 2004).
A ação performática que conduz a presente reflexão teve início na Marcha das Vadias de 2012, evento o qual Indianarae é uma das organizadoras. Ela relata que, durante a marcha, algumas meninas se mostravam apreensivas com a possibilidade de serem presas por atentado ao pudor ao expor seus seios. Indianarae resolve, então, convocar uma comissão de pessoas trans, liderada por ela, para que colocassem os peitos para fora. Por serem oficialmente homens, a polícia não poderia fazer nada contra elas. Em um determinado momento, a marcha passou em frente a uma igreja em que acontecia uma missa de crisma para crianças e algumas meninas invadiram a igreja com os peitos de fora.
“Foi muito engraçado. Na verdade, fui levada para igreja. Tenho os vídeos que provam isso. Saiu na imprensa e fui reconhecida como a mulher que tirou os peitos para fora e entrou na igreja. Mas foi a Polícia Militar que me pediu ajuda e me levou para dentro da igreja. Fui levada para dentro da igreja com os peitos de fora para resolver a questão. Aí fui fazendo sinal para as pessoas saírem e no final fomos parar todas na delegacia.”
Foi a partir de então que Indianarae começou a fazer sua ação performática de colocar os peitos para fora em público, forma que encontrou para provocar uma reação da
Ocupação Sertransneja
Ocupação Sertransneja
Por: coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem
Junho de 2017. A noite de abertura de Os Corpos são as Obras foi ocupada pelo coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem para uma noite Sertransneja com quadrilha travesti e leitura de cordéis.
SerTransneja Balaiera
Travesti que é balaieira
Roda no maracatu
e resiste com o corpo do balaio
Na flor do caju
Travesti é ser vivente
da sobrevida do sertão
enfrentar ódio indolente
é mais que aperreio, bala e facão
Foram chamar as trava da peste
Que é que há se eu vim do norstes
eu vim de lá
eu vim de lá
Roda balaieira
Vai rodando sem parar
Vai rodando no balaio
Na flor do maracujá
Axé maracatu elétrico
Axé meu povo nagô
Axé as trans de Aracatiaçu
Dança dança meu amor
(Tertuliana Lustosa e Wescla Vasconcellos)
Eu escolhi ser de verdade, e isso me faz grande nobre e real.
E embora, as vezes, dói menos que ficar,
Não sou do tipo orgulhosa, mas devo admitir, que desta vez eu tenho razão,
Não consigo levantar, caminhar, em direção ao desconhecido.
Conhecida sim, é a felicidade.
Vocês me deixam atordoados, e anestesiada,
Afinal de contas, na minha frente, estão apenas corpos caídos
Identificados como meu futuro
E eu escolhi ser de verdade,
E isso me faz grande nobre e real.
Sou Francisco, sou João, sou José, sou grito, sou a força, sou amor, sou a fé, sou o espírito revolucionário, sou Laruê do Exú, sou a negra, africana, sou o frevo, sou o sol potiguar, sou atriz, sou escrava, sou rainha, sou Maria, sou Joana, sou a Xica, que vive na ladeira da misericórdia, sou apenas cabelereira e PUTA.
Governo, você vai ter que admitir,
a minha sobrevivência.
Quadrilha Setransneja promovida pelo coletivo Xica Manicongo
Junho de 2017. A noite de abertura de Os Corpos são as Obras foi ocupada pelo coletivo Xica Manicongo e as menines da Casa Nem para uma noite Sertransneja com quadrilha travesti e leitura de cordéis.
SerTransneja Balaiera
Travesti que é balaieira
Roda no maracatu
e resiste com o corpo do balaio
Na flor do caju
Travesti é ser vivente
da sobrevida do sertão
enfrentar ódio indolente
é mais que aperreio, bala e facão
Foram chamar as trava da peste
Que é que há se eu vim do norstes
eu vim de lá
eu vim de lá
Roda balaieira
Vai rodando sem parar
Vai rodando no balaio
Na flor do maracujá
Axé maracatu elétrico
Axé meu povo nagô
Axé as trans de Aracatiaçu
Dança dança meu amor
(Tertuliana Lustosa e Wescla Vasconcellos)
Eu escolhi ser de verdade, e isso me faz grande nobre e real.
E embora, as vezes, dói menos que ficar,
Não sou do tipo orgulhosa, mas devo admitir, que desta vez eu tenho razão,
Não consigo levantar, caminhar, em direção ao desconhecido.
Conhecida sim, é a felicidade.
Vocês me deixam atordoados, e anestesiada,
Afinal de contas, na minha frente, estão apenas corpos caídos
Identificados como meu futuro
E eu escolhi ser de verdade,
E isso me faz grande nobre e real.
Sou Francisco, sou João, sou José, sou grito, sou a força, sou amor, sou a fé, sou o espírito revolucionário, sou Laruê do Exú, sou a negra, africana, sou o frevo, sou o sol potiguar, sou atriz, sou escrava, sou rainha, sou Maria, sou Joana, sou a Xica, que vive na ladeira da misericórdia, sou apenas cabelereira e PUTA.
Governo, você vai ter que admitir,
a minha sobrevivência.